Como escreveu Gilberto Freyre, aqui o football jogado pelos ingleses ganhou astúcia, brilho e espontaneidade individual. Saiu de campo o cartesianismo europeu, entrou Dionísio e fez a festa
As manifestações da torcida do Grêmio de Porto Alegre na partida contra o Santos, rotulando ironicamente a massa santista de “filhos de nordestinos”, e a intensa reação popular contra algumas ausências na convocação feita pelo técnico Dunga – ausências caracterizadas pelo abandono do futebol-arte. Ou como definiu um importante jornal americano, a morte do samba nos leva a refletir sobre o que representa esse esporte para a nação brasileira e como aqui ele se encaixou perfeitamente na cultura nacional.
O futebol chegou ao Brasil pelas mãos da aristocracia. O que poucos podiam imaginar, àquela época, era que, por sermos um país de economia limitada e com grande parte da população passando por necessidades básicas, pudéssemos adotar esse esporte como forma de expressão cultural. O futebol tem como característica principal, porém, a livre capacidade de expressão. E por isso, com o passar dos anos, incorporou-se de tal maneira nos costumes nacionais que hoje até poderíamos imaginar ser um jogo essencialmente brasileiro.
Um dos nossos grandes autores, Gilberto Freyre, já na primeira metade do século passado, atentava que a nossa sociedade era dona de uma modernidade alternativa, graças às suas características híbridas, em que predomina a miscigenação de raças. Freyre, contrapondo-se aos que reagiam contra os negros e o futebol, apontava a nossa singularidade como reflexo da mestiçagem, o que deveria ser motivo de orgulho, não de vergonha. O que pode ser interpretado como uma afirmação corajosa de crença no Brasil do mestiço e do negro, principalmente porque muitos escritores à época defendiam a superioridade do branco, corroborando as doutrinas racistas.
Extremamente atento ao processo de massificação do futebol no Brasil e, principalmente, à integradora mistura de raças e classes sociais nos gramados, o sociólogo não deixa de mencionar, já em 1936, em sua obra Sobrados e Mucambos, que a maior parte dos jogadores de futebol era quase toda mestiça. Na constatação de um fato que vinha ocorrendo nas últimas décadas, como veremos a seguir, sugere que a ascensão do mulato em um meio originalmente elitista implicou uma radical mudança na expressão artística do esporte, abrasileirando uma cultura rígida e europeizada.
Nesse aspecto, ele define a brasilidade futebolística como “dionisíaca”, baseada no individualismo, na emoção e na ação impulsiva em contraposição ao padrão cultural “apolíneo” dos europeus, muito mais formal, racional e ponderado. E dizia mais: “Sente-se nesse contraste o choque do mulatismo, ou melanismo brasileiro, com o arianismo, ou albinismo, europeu. É claro que mulatismo e arianismo não como expressões étnicas, mas como expressões psicossociais condicionadas por influências de tempo e de espaço sociais”.
O estilo brasileiro de jogar, segundo Freyre, contrasta com o dos europeus por um conjunto de qualidades: capacidade de surpreender, manha, astúcia, ligeireza e, ao mesmo tempo, brilho e espontaneidade individual. Em nossos passes, dribles e floreios com a bola há alguma coisa de dança e capoeira que arredonda e, às vezes, adoça o jogo inventado pelos ingleses (ou italianos etc.) e por eles jogado de forma tão angulosa.
O nosso futebol, com sua criatividade e alegria, é expressão de nossa formação social, rebelde a excessos de ordenação interna e externa, a excessos de uniformização, de geometrização, de estandardização, e ainda a totalitarismos que façam desaparecer a variação individual ou a espontaneidade pessoal. O futebol no Brasil se fez marcar por um gosto de flexão, de surpresa, que lembra passos de dança aberta ao improviso, à diversidade e à espontaneidade individual.
Enquanto o futebol europeu é uma expressão do método científico e do esporte coletivo, em que a ação pessoal resulta mecanizada e subordinada à do todo, no brasileiro a máxima é a expressão individual da pessoa que se destaca e brilha. Isto é, um craque como Paulo Henrique “Ganso”.
O negro realmente tem, a meu ver, papel preponderante não só na questão racial, mas também na forma brasileira – descontraída, irreverente, criativa, alegre e, às vezes, até irresponsável – de jogar. É que existe uma clara relação entre a prática do futebol e a expressão corporal total e inusitada.
FONTE: CARTA CAPITAL