Escritor se passa por morador de rua e relata, experiência de quem vive essa realidade.
Durante quase dois anos, o jornalista e escritor Tomás Chiaverini percorreu as ruas de São Paulo e conviveu de perto com a situação dos moradores de rua da capital. Fez contatos, acompanhou ações da prefeitura, e se disfarçou de mendigo antes de ser recolhido em albergues e passar a noite com os moradores de rua do centro da capital.
Os relatos sobre a experiência deram origem, em 2007, ao livro Cama de Cimento. Com a experiência de quem viveu a situção na pele, Chiaverini diz que a sensação é de violência real nas ruas da capital. Segundo ele, durante a noite há sempre a tensão diante da iminência de uma possível agressão.
Após analisar o levantamento feito pela Fipe sobre a população de rua na cidade, ele diz ter ficado surpreso com o aumento de moradores nessa situção nos últimos anos apurado pela pesquisa. Segundo ele, a sensação é de que nada do que está sendo feito resolve definitivamente o problema, já que esse aumento coincide com a pujança vivida pela economia no período.
A seguir, a entrevista:
iG - Chamou atenção o fato de durante esses anos ter crescido o número de moradores de rua em São Paulo?
Tomás Chiaverini - A estimativa que tinha em 2003 era que existiam 10 mil pessoas em situação de rua. Aumentou muito. E estranho aumentar tanto numa época em que a economia melhorou. Acho que isso é uma prova de que a política para essas pessoas não funciona. Parece que nada do que está sendo feito resolve definitivamente o problema. Conversei com pessoas muito sérias, gente que estudou o assunto a vida toda. Vi albergues muito bons, com espaço, programas de reinserção. Tem quem passa por esses lugares mais de três vezes e no fim sempre volta para rua. Mesmo a vanguarda da assistência social ainda se pergunta como fazer. Tem a questão econômica, que é fundamental. Mas se o problema for dinheiro, ele fica na casa de alguém e dá um jeito.
Para ir para calçada, não é só um componente econômico. Porque os motivos que levam as pessoas às ruas são diversos. Tem o catador de lata que não consegue voltar para casa com a carroça e acaba dormindo nela. Ou brigou com a mulher e nunca mais voltou para casa. Ou por causa das drogas, o álcool, pessoas que não são mais aceitas dentro de casa. Tem quem perdeu emprego de uma forma traumática, violenta. Ou ex-presidiário que não é mais aceito aonde veio. Sempre tem outra coisa além da questão financeira. Não adianta dar trabalho ou dinheiro. Falta outra coisa. Cada um tem uma falta diferente, e o mais difcil é saber como tratar histórias tão diferentes de forma a não generalizar. Para alguns vai ser preciso tratar do alcoolismo. Já outros precisam de psicólogo.
iG - O que acha dos moradores e comerciantes que se mobilizam para não dar ajuda nem comida a essas pessoas?
Tomás Chiaverini - Não adianta não dar comida. Que precisa tirar essas pessoas da rua precisa. Mas não tirando o pouco conforto que você ainda tem que elas vão ser ajudadas. Você pode resolver o seu problema, e não o delas. Porque elas vão para outro lugar. Comida e abrigo são questões emergenciais e é preciso impedir que elas morram de frio ou de fome. Essa é a primeira coisa. Depois se pensa em tirá-las da rua. Suspender a comida é como exterminar. É como dizer: vamos tornar a vida dessas pessoas insuportável. Vamos passar óleo na frente da loja, água pra em cima de quem dorme.
iG - Como foi dormir na rua durante sua experiência?
Tomás Chiaverini - Na verdade, não dormi nenhuma noite. É impossível dormir. É muita tensão. Algumas vezes estive junto com técnicos do Capes. Uma vez passei a noite embaixo do [viaduto] Glicério, e outra em um albergue. Dessa vez, me disfarcei e fui recolhido. Me mandaram para um albergue na rua Na Paes de Barros.
iG - A abordagem chegava a ser violenta?
Tomás Chiaverini - Em São Paulo, não muito. Li recentemente uma reportagem da revista Piauí [sobre a Choque de Ordem da prefeitura] e achei que no Rio a situação é mais violenta. Quando fiz o trabalho, entre 2005 e 2006, as pessoas perguntavam quem estava interessado em seguir para o albergue. Quem estava ia, quem não estava, ficava.
iG - Por que muitos não vão para esses albergues?
Tomás Chiaverini - Muitas vezes porque você não pode levar grandes pertences. Mala de mão, sim. Agora, carroça e cachorro não podem levar. E as pessoas não queriam deixar eles de fora. Fizeram, no governo Marta [Suplicy, prefeita entre 2001 e 2004] uma experiência no Projeto Oficina Boracia, com lugar para deixar carroçaa e animais. Mas depois me parece que mudou o perfil desse albergue.
Outra coisa que muitos me relatavam era que o rompimento dessas pessoas com a sociedade, antes de ir para as ruas, foi tão forte que eles acabam não se adaptando às regras do albergue. Na rua você vive num cotidiano de total liberdade, apesar de privado do conforto da vida moderna. Essa noção de liberdade e ruptura com a vida em sociedade não se encaixa na realidade do albergue, que tem regra para tudo. Tem regra para tomar banho, para jantar, para acender a luz, para sair do quarto. Tem fila pra tudo. É um esquema de quartel.
Outra coisa: muitos querem mesmo ser recolhidos, principalmente em época de frio. Até para evitar que morram. Agora, eles são levados para onde tem vaga. Então, quem vive na região da Praça da Sé pode ser levado para um lugar a 30 km dali. E, no dia seguinte, não tem vaga garantida para esse albergue e ele vai ter que voltar. Muitas vezes sai de lá de ressaca, não sabe onde está, não tem dinheiro pra voltar para aquela sua comunidade com quem mantém relação, seja com o dono da padaria, com o cara que deixa ele dormir no posto, debaixo da marquise ou mesmo com os conhecidos que o protegem.
iG - Quando você dormiu no albergue, te pediram documento?
Tomás Chiaverini - Quando fui, estava sem nada. Disse que tinha perdido. Não existe muito controle sobre isso. Uma coisa interessante é que dei outro nome quando entrei porque tive medo que um técnico do Capes me reconhecesse. Antes, tinha passado uma noite acompanhando os trabalhos dele, e ele sabia que eu fazia esse livro. Foi a mesma pessoa que me recolheu entre os moradores de rua. Ele não me reconheceu.
iG - Como era o lugar?
Tomás Chiaverini - Era razoável. Entre os albergues, tem muita discrepância. Muitos são geridos por ONGs e alguns são altamente confortáveis, com cama bem arrumada, banheiro limpo. Eu fiquei num quarto com oito beliches, cama limpa para dormir e um mínimo de higiene. Durante o trabalho, visitei mais de dez. E dormi, disfarçado, em um.
iG - E como foi dormir na rua de fato?
Tomás Chiaverini - É muito tenso. Não preguei o olho. Todo mundo que mora na rua tem histórico de agressão, seja pela polícia, seja pelo boyzinho que quer fazer graça ou mesmo com os colegas.
iG - A pesquisa aponta que as brigas entre eles são as formas mais comuns de violência nas ruas. Por que isso acontece?
Tomás Chiaverini - Geralmente por bebida ou por drogas. O que acontece nesse espaços, e isso a pesquisa não consegue mostrar, é a forma como o tráfico usa a população de rua como disfarce. Frequentei o Glicério quase diariamente durante dois meses. Mas durante o dia. E entrevistei todo mundo que morava lá. Quando ganhei confiança, resolvi dormir no mesmo lugar. Mas à noite não vi aquelas pessoas que eu conhecia. Vi só o tráfico, gente que ia à noite vender crack naquele lugar. Isso acontece porque as pessoas não chegam perto de moradores de rua quando veem todos juntos, com aquelas fogueiras queimando. Ninguém passa lá. A sociedade vira o olho. um espaço ideal para quem quer vender ou consumir o crack. Quem mora ali dorme antes da meia-noite. Toma sua cachaça e dorme. Mas a uns 30 metros deles fica só quem vende o crack. Esses não dormem. Então você vê muita discussão entre eles, muita gente querendo roubar quem morava ali. A ameaça estava o tempo todo por perto. Me orientavam para guardar a carteira na cueca, dormir com o tênis debaixo da cabeça. Sempre tem um "noia" rondando, querendo roubar a esmola que você conseguiu.
iG - Sentiu medo da polícia?
Tomás Chiaverini - Embora haja suspeitas de assassinatos cometidos por policiais contra moradores de rua, como naquele caso em 2004, só vi policiais passando perto dos moradores sem muita aproximação. Eram como os outros pedestres: eles não te olham. Não vão parar uma viatura pra te revistar.
iG - E a Guarda Civil?
Tomás Chiaverini - O problema da Guarda Civil são os rapas. Isso eles faziam. Chegam com caminhão de lixo, pegam tudo e colocam no caminhão. Não vi acontecer, mas ouvi muitos relatos.
FONTE: Pichonelli, Matheus. iG